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agosto 17, 2006

Às vezes, a longa ausência resta desespero, meu.
Às vezes, só a procura já basta para transtornar.
Mas como todo bom andarilho,
não me importo em mudar,
até a definitividade das minhas andanças.

A construção, outra
A mobília, mesma.

Peço aos que linkaram esta página, substituir o antigo pelo novo link. Agradeço a todos.

Vejo-os todos lá.

Abçs.

julho 23, 2006

Situação

Um torpor, repentino, alveja-me
enquanto o gosto dos dias gastos
dissolve em minha saliva

Não procura, ele, em mim, o sabor da terra,
mas as raízes fincadas em nuvens de zinco

O rosto é outro a distrair minhas aparências
formas frouxas flutuantes

De repente um medo, esquecido no breu dos
meus vazios, reage e assalta a minha vontade

Sucumbo sem saída

A renegar rumores de outras solidões
na viscosidade em meus poros
{...rasos, largos...}
deixo reservada a vida
pulverizada entre mim e o infinito que lho cerca

No final

Saliento, tão somente, que ainda cabe em mim
temores, dúvidas, riscos
cabe a dor a arder, se for
cabe em mim um dia, um mundo
e só não vinga, só não me cabe o seu amor

julho 12, 2006

Um momento na civilização.

Dias há em que até dá pra ser Civilizados, e hoje é o meu dia. Confira se desejar.

julho 09, 2006

Acorreu-lhe a solitude.

Os olhos doíam-lhe as incertezas dos tempos de antigamente: lembranças. Quando criança aprendeu a se esconder dos amigos, pais, lobisomen, bichos-papão. E fazia isso até hoje, velho já, ar carcomido já e para sempre. A vida poderia ter sido mais fácil se quisesse. A coluna trincava a cada movimento, mas procurou levantar-se. Aquela luz estava cegando o pouco da visão que ainda restava, precisava fechar as cortinas. Tinha agora sala, 3 quartos, cozinha, 3 banheiros, quintal com pomar e dois cachorros só para ele. O silêncio dos dias zumbia zumbindo em seus tímpanos cansados. Desde que a família partira vive assim: um pouco de leitura das bulas das medicinas, comida sempre fria e solidão com água para descer macia. Anda apoiado nas cadeiras, mesas, pilastras, paredes e costuma estar pelos cantos da casa grande demais, perdido entre a poeira e as teias de aranha, num eterno esconde-esconde. Até que toda quinta a diarista aparece, varre todos os cômodos e retira-o do sossego jogando-o em baixo do chuveiro: Hoje é dia de banho, velho imundo! A água regelada escorre-lhe pelas dobras levando-lhe o resto da dúvida sobre o fim dos dias e numa reza miúda ele clama a Deus pelo dia da sua própria partida.

junho 30, 2006

Não entendes?

Não falas de liberdade
Sabes que sempre haverá um cemitério em tua memória
E às vezes é preciso visitá-lo
Acender velas e sentir o aroma das flores mortas
E às vezes abrir a porta
Abrir outro canal
E partir

Impossível estar liberto da existência.

junho 04, 2006

(Ab) Solvido

Passeia-me, um coração, pela boca infinita em dentes e pegadas contrapostas:
esquerda - direita.

Passear-me-á amedrontado, na manhã da sua partida, afoito, por entre sonhos que desperdiçamos sob a luz insuficiente da lâmpada seca, deitados no macio das madrugadas.

Sufocar-me-á o vômito verdoloroso quando não puder cantar-te, à rouca voz, a falta de vontade de sair dos teus laços.

{Saberei...}

Saberás o clamor das minhas extremidades no momento exato do choque, no instante em que os ruídos de fora irromperem pelas frestas e inundar-nos de pavores.

Revelar-me-á por inteiro, então, um coração franzino e sem fé, confundido entre os pêlos e as cinzas vãs que a ventania não quererá carregar.

maio 17, 2006

E n t r e c o r p o


Um corpo corta a infinitude horizontal da minha quimera
E vasto, sacia a voracidade do meu desejo
Um corpo se enovela em mim se alimenta em mim
Arfa e me sufoca

Um corpo solto perambula por meus desertos
E minhas ruas em carne-viva

Se me ilumina em tardes de outono e cai

Um corpo violento me atropela
E translúcido em desesperos,
Na contra-mão das noites azuis, se revela

Um corpo outro me entremeia
Ecoa forte e saliente em meu desvão
Buscando a vontade frouxa
Lassidão

Enquanto {irremediavelmente} devagar
Escorro por entre seus dentes
E desapareço.



maio 13, 2006

Linda!

“A culpa é sua”, falou Linda completamente nua, diante do seu reflexo, alisando-se entre as pernas enquanto embaçava o espelho, preso à porta do armário posto ao lado da cama, com a quente respiração que propagava no ar, por suas narinas, CO2 em estado puro. Contudo, enquanto falava diante do espelho e com as suas delicadas mãos entre suas pernas desnudas, de delicadeza imensurável, não era a ela própria que Linda mirava, não era ela, a figura na imagem virtual, para quem ela fixamente olhava a repetir “A culpa é sua” em um tom tão profético quanto o mais profundo dos sermões, como quem sabe o que é o peso da palavra culpa, como quem precisa atribuir a outrem o resultado de seus próprios atos, como boa católica que era. Por cima dos lençóis serenamente azuis que revestiam o leito onde costumeiramente repousava, encontrava-se o alvo de tão carregado desabafo, rumor da tentativa de escamotar sentimentos vorazes imiscuídos em cada uma das suas células.

No pequeno criado-mudo que completava o conjunto dormitório com a cama, o guarda-roupas, a cômoda e os abajures, que, por sua vez, combinavam com as cortinas cor de amanhecer, jazia uma bíblia, com as páginas abertas que bailavam ao sabor do vento que no quarto adentrava suave e refrescante como toda a brisa de outono. Dançavam as páginas como se quisessem espalhar por todo o ambiente as palavras que Linda trazia na ponta da pequena língua rosada, as palavras que, sabia ela, nenhum conforto lhe incutia. Mesmo assim Linda conservava o livro sagrado aparente sobre o móvel para, quem sabe, poder ter a impressão de que teria algum apoio em noites de insônia ou, ainda, nas de sonhos ruins. Apenas o ruído do bailar das paginas de seda, finas e paradoxalmente pesadas pelo teor das palavras gravadas, entrecortava os silêncios estendidos na infinitude do intervalo entre um pensamento e outro.

As mãos agora alisavam os pêlos que desenhavam à perfeição seu púbis e a respiração, agora mais ofegante, voltava a tornar a lâmina de vidro reflexionado numa superfície fosca. Ela olhou o teto branco no mesmo momento em que foi assaltada por um acesso de riso descompassado como os passos que começara a desempenhar em direção ao seu repouso, verdadeiro leito de Procusto*. “A culpa é sua”, repetiram os lábios umedecidos por uma língua macia, já saciada. O espelho já estava a mostrar suas belas costas, enquanto em passos curtos punha-se a caminhar. Ainda estava extasiada, olhos vidrados como que banhados por substância psico-trópica, alucinógenas lágrimas de emoção. De sobre os lençóis o indeterminado sujeito ouvinte do monólogo sobressaltou-se numa estridente gargalhada.

Linda passou as mãos em seus cabelos negros e desgrenhados, deu mais exatos cinco passos, deitou na beira da cama e desferiu um beijo com gosto de sofreguidão naqueles outros lábios sorridentes e volumosos. “A culpa é sua, por ter-me feito amar você assim” ratificou numa frase agora completa. Então, neste instante preciso lhe subiu pela planta dos pés soltos no ar um quentume que enrubesceu sua pele e eriçou a penugem do seu entreperna, enquanto suas mãos magras e acriançadas percorriam lentamente o colo dos seios de sua cunhada. Duas almas trespassadas por um desejo, um sortilégio perene e delineador de existências.

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(*) n.a.: Reza a mitologia que Procusto foi um salteador, que prendia numa cama todos os que ele capturava, cortando os pés dos coitados que passavam do tamanho do leito e esticando quando era menor, a pessoa tinha de ficar do mesmo tamanho da cama. Então dizer que alguém se deitou no leito de Procusto é dizer que quem deita na “cama do pecado”, independente da vontade, sofre as conseqüências, tenha pecado por falta ou por excesso.

maio 05, 2006

abril 29, 2006

Sombroso.

“Por um motivo ou outro, sempre lavarei minha honra com o sangue da humanidade.” (autor desconhecido)

Via o real da vida escorrer por aquelas pernas e sentia a fedentina pestear o ar. Odor de morte. Tentou voltar atrás e sentiu que já não tinha como, um retorno agora seria ineficaz. As paredes, entretecidas de madeira que apodrecia mais e mais a cada nova estação, sempre oprimiram-no. Menino, cuidado, este mundo tá cheio de otário, dizia sua mãe, voz eterna em sua consciência. E agora aquilo, aquilo. A viscosidade tinha um brilho morno e não fosse a cor vibrante juraria que guardado, ali, havia algo de sublime. Sobrevivente de uma corrupção tentacular, desde o inicio degradante, pôs as mãos na cabeça, um suor desesperado corria testa a baixo. A camisa, molhada da água da chuva que chegava através da janela aberta às suas costas, grudara à sua compleição deserta. O barraco já dava sinais da inundação lenta e sofrida que chegava sem cerimônias por todas as frestas. Num dos cantos, a podridão.

Avisara que nunca tinha feito aquilo antes, que era loucura, contudo ela insistiu e fê-lo comprometer-se. Deu palavra e não seria otário de desfazer o trato, afinal a culpa pululava também em suas veias. Não demorou muito, três dias ou quatro, e ela apresentou-lhe as folhagens, ervas populares, medicina brava, não tinha mesmo como ir à farmácia, ou procurar a dona benzedeira que também era parteira de práticas gerais, tinha não. Demorou mesmo ainda para ela adentrar a baiúca com a substância já no bucho, danada a fazer efeito. Estava feito louca, dizia sentir as contrações, que sofria de dor. A dor.

Ele tinha de fazer a sua parte, o principal a garota tinha já providenciado. Não ia passar por otário. Ela chegou, jogou-se ao chão, fazia força, parecia ter aprendido cedo. Pediu para ele posicionar-se entre as suas pernas escancaradas. Ele viu que o real da vida estava ali, escorrendo da boceta para o chão. Agachou, sim, e sentia um nojo de tudo, uma repugnância quase insuportável. Quando o bolo de carne em avançado estado de composição iniciou por aparecer ele começou a puxar, ao comando dela, primeiro desajeitadamente e imediatamente em seguida, após um grito desesperado da garota, numa violência desmedida, até a completa remoção do pré-ser, arremessado para um dos cantos do único cômodo que compunha o local.

Não houve choro, alias, não fosse o intenso cair das águas sobre as telhas velhas, não se ouviria nada ali, nem um suspiro. Ela sobre uma poça sangrenta, diluída pela invasão da chuva, nem mesmo movia pestanas e parecia nem respirar, não dava para saber. Ele encostou à parede e deixou a janela às costas, inerte, lançando as mãos em baixo da água que chuviscava para dentro do barraco, na tentativa de deixá-las limpas. Inútil, já estava comprometido. Nem a dor, e principalmente esta, pôde ser limpa. Acorreu-lhe uma quentura retesada e uma vertigem tomou-lhe conta dos brios. Quatro passos e estava diante da porta, que de prontidão já era fechada atrás de si. Foi-se. O céu desabou naquela tarde, e durante a semana choveu largamente. Só ele não choveu. Nunca mais.

abril 22, 2006

Horror

O beijo é desespero
Louca mortandade

Numa ponte não finita
Eu e o horizonte do seu corpo
Desconstituído

Quero outro desejo outro perigo
E me elevo até seu visgo

A porta fecha, saída não há
Vontade deitada nua na poeira da relva
Resvalar

Claustrofobia anômala da razão
Já não te encontro nem aqui
Escuridão

Crio estrada longitudinal
E num sentido só só ouço o zumbido

Meu grito...

meu grito.

abril 13, 2006

Sim

abril 04, 2006

Devaneio

Meu sexo me consome
Milimétricas partículas de prazer
Não me contento

Meu sexo não lamenta
Revela-se intumescido
E em toda parte me sustenta

Meu sexo me corrompe
Rompe irrompe e me transborda
Abluindo-me à completude,

Urge

Meu sexo é luz vesga que recai da imensidão
Vassalo de toques línguas e lâminas
Fino véu que recobre minha razão

Lava

Gotejo

Explosão


Meu sexo vai às profundezas
Repleto de inundações
E me separa, para
Propagar-me em milhões
Sem agruras cissuras ou tormento
Meu sexo?!
Ah meu bem
Meu sexo é seu alimento

março 27, 2006

Encantada

Gostaria de ter cantado para as massas. Gostaria. Contentou-se, porém, com os poucos admiradores que sua voz melodramática conseguiu tocar de maneira especial ao longo dos anos. Sereia dos pervertidos e dos desesperançados, acostumou-se às faltas, principalmente de sentido, que a vida lhe apresentara. No camarim deserto sorria ao acaso, na boca portava um gosto amargo do mundo e entre os dedos um cigarro a desprender uma nesga de fumaça que lentamente subia e anuviava o ambiente. Um suor gotejava-lhe fronte a baixo. Um suor frio e desmedido a denunciar seu pavor. Não sabia quem no espelho a mirava, perdida que estava entre as quatro paredes e as sombras infinitas que a visitava diuturnamente. Lá fora uma noite carente de estrelas perpetuava o mal-estar dos desabrigados de toda espécie, inclusive o dela. Até que um som rompente estragou o sono sutil de quem, à entrada do cabaré, dormia sob o alpendre. As putas que dentro dormiam também se assustaram com o estampido mirrado, veloz, mas que se fez notar de prontidão. No camarim o espelho, agora vazio, refletia um nada, refletia a solidão.


by Alfred Stieglitz

março 20, 2006

Diário dos Sentidos III

by Lilya Corneli


13 de novembro de 1954

(Carta ao passado)


Fizemos tudo direitinho. D-i-r-e-i-t-i-n-h-o, não foi? Ainda podia sentir, até instantes atrás, a ansiedade daquele encontro. A lua já trilhava tranquilamente seu percurso naquele negrume forrado de estrelas, quando chegastes sobre teu cavalo branco-luzidio para tirar-me a solitude. Numa paragem recôndita dos meus devaneios, preparou-me um banquete: sorrisos, carinhos, meigos olhares, compreensão. Pôs-me a mesa, sentou-me delicadamente e apresentou-me à ilusão do mundo. Assenti à viagem com um leve brilho no olhar. Saboreamos tudo, por completo. Até pude sentir quando a fria lágrima escorrida dos olhos teus, molhou-me os seios, com contemplação. Uma noite perfeita, regada a promessas, planos e intenções. Inclusive entendi que querias entregar-te a mim e não hesitei em entregar-me a ti. Fluxo e refluxo. Cavalguei por bosques penumbrosos e teus arbustos escondiam o real. Não me preocupei porque sentia tua língua amistosa desfazer-me as elucubrações. Era só torpor. Tanto que aquele brilho ofuscava-me. Aprendi que nunca verei o lado oculta da lua, mesmo em noites de total eclipse. Contei as estrelas, inebriada que estava com as tuas emanações e o odor dos teus sentidos espraiados por entre minhas entranhas, até que em teus braços adormeci um sono pedregoso.

Um gosto de sonho amarrotado veio despertar-me logo nos primeiros raios solares. Não havia mais estrelas nem imensidão. Um vento perpetuo e de rajadas secas acorreu os quatro cantos do quarto oco. Você ao meu lado esquecido de tudo, sorriu-me um sorriso vazio e desapresentou-se irremediável. Um desejo canaz invadiu-me. Não conheci o teu olhar e resolvi sair enquanto a chuva lá fora não se precipitava catastrófica e eu poderia caminhar por outras sendas. Suas lágrimas se me reapresentaram em abundância, mas não tinha solução. Não mais. Cediço que desconhecia o homem que fora, até então, meu príncipe. Desisti dos sortilégios. O brilho feneceu e tratei de inumá-lo. Senti e também lhe chorei por uma eternidade. Chorei pelos afagos, pelos pesares e por acreditar que desta vida um dia levaríamos os milagres.

março 13, 2006

Mistério da Escuridão

É negra esta pele
Que cheira a mistério
Mistério
Que remete ao império
Depois de curvas ancadas
Sobr´elevados dispersos do poderio
Estabelecido
Pelo o reinado do sangue
Furtado
D´outras plagas
Que, se sabe, relegadas
Ao acaso do descaso com o caso
Infortúnio voluntário
Do orvalho ressecado
De gosto, na boca, do fel
Como pipas, soltas ao léu
Com tudo, mas sem nada
Porque eles queimaram aquele céu
O sofrer do povo da mordaça
Derruba o sufoco do mordaz
Que nada, quer nadar
Ou só correr, no retorno à liberdade
Da terra dizimada
É negra esta pele
E ser feliz, compele
Já que, no fundo, o balouçar da embarcação
Não o fez, nem de susto nem de surto
Padecer do coração

março 08, 2006

Um olhar

Diante do espelho, um abismo.
Sem escusas
Cerrou as pálpebras
Afastou-se
E preferiu não mergulhar.

Mas continuou, o abismo, lá
Dentro de si.


by Sarah Moon

março 03, 2006

Escrivinhador

by Gian Paolo Barbieri
O sol a pino, imponente e de brilho invulgar, clareava-lhe os caminhos tal qual a poderosa consciência a indicar-lhe a finalidade da vida: labor. Identificava bem o seu arado. Mãos ossudas traziam o peso dos anos de labuta. Se só ela dignifica o homem, ele, então, poderia considerar-se pleno. Maduro. O tempo houvera ensinado bem seu trabalho: preparação, semeadura, colheita. Várias etapas num único contexto. Aquele era seu campo, seu lugar e bem sabia tratar. Paciência de garimpeiro, contudo nem só por pedra era sua atenção. De pedra, às vezes, era seu caminho. Necessidade maior tinha de tratar bem a prima matéria. Primeiro capinar, tirar os excessos, os lixos, acabar com as daninhas.

Os sentidos tremiam, às vezes. Excitação. Diante do descampado, brancobservador, só percepção. Trabalho farto, rude, porém indispensável. Dobrava-se em reverências. Primeiro o oficio, e assim sabia fluir e confluir a liberdade. Eterno (re)fluxo. Arar a imaginação era, para ele, como arar a terra. Verossimilhança. Preparar o pensamento, semear idéias, adubar, regar, colher. Que a colheita sempre deveria ser abundante e diuturna, não teria como olvidar. As mãos magras, oblongadas, carregavam a calosidade na ponta dos dedos que sustinham a pena a correr pela folha em branco, lisa, ora suavemente ora com imensa sofreguidão. No deslizar do bico, a tinta era espalhada e montava letras, combinava palavras, harmonizava sentidos. Não era vã, a labuta com o texto. Dali a pouco, os frutos. O agricultor das letras trabalha a imensidão, propriedade produtiva, nunca devoluta, para o sustento do mundo. Vasta extensão sempre pronta para exploração: consciente, subconsciente.

Enquanto o sol seguia sua jornada, ciclo completo. A noite era, também, propícia à dedicação. Boas aragens inspiravam. Trabalho da alma, não tem preço. Seu galardão, sua paz. Tratava de semear com eficiência. Mudas de frases fortes para gerarem parágrafos consistentes. Latifúndio que, ao contrário de outros, servia à humanidade: todo verso, cada estrofe, cada poema, toda prosa. Desejo edaz. Nosso trabalhador, ciente está da perenidade do serviço. Prossegue. Persiste. Prospera. Profissional de arte valorosa. Não era barqueiro, sentinela, pipoqueiro, vendedor, advogado, não era nem falsário nem isento nem bandido. Escrivinhador, sim. Que não se desfaz da dor como complemento da satisfação. Inteira.

Dia e noite. Para o operário do verbo não teria tempo bom nem ruim. Os papéis precisavam ter valor. As palavras precisavam brotar, multiplicar, gerar filhos, netos, gerações. Os livros precisavam de substrato vital, de seiva bruta, prima sustentação. Parou por um instante só, o suor descia-lhe testa a baixo. As mãos recolheram a gota fria que se precipitava afoita e arremessou-a distante. Fração de segundos, eternidade para o universo. Então decidiu: mãos à obra.

fevereiro 27, 2006

Assim

by Sarah Moon


Sucumbo às perscrutações, sorridentemente
Desencontro o depois esquecido entre o ar e o infinito
Fosse meu este mundo seu, dele faria universo
Que findaria... que findaria
Em mimmmmmmmmmmm

fevereiro 22, 2006

Falso Pachola

Surpreendi-me com a beleza seca de sua fronte. Os olhos hirtos em minha direção, mirando minhas saliências, minhas necessidades. Quedei-me inerte. Seus dedos cruzaram a mesa, por sobre a toalha de quadrados minúsculos, e roçaram a pele do meu antebraço para sentir o arrepio que a sua crueldade causava em mim. Gelei mais uma vez. Assim como gelava quando me escondia por detrás da porta para ver de perto os sussurros que papai e mamãe faziam de madrugada. Sussurros estes que culminavam num leve respirar, típico de quem acaba de retomar o fôlego, de ambos. Só identificava isso naquela escuridão, para logo em seguida, num silêncio, que de tão pesado, palpável, correr na pontinha dos dedos para o meu quarto e não dormir por causa dos ecos que aquele sexo (descobri, mais tarde, o nome) produzia em minha cabeça. Enregelado permaneci a aguardar que as faíscas dos seus dedos em minha pele incendiassem a toalha-xadrez.

Busquei nas profundezas a vontade que tive em tempos remotos. Minhas forças se me mostraram inúteis. Aquele era o lugar de onde não deveria sair: o fundo claustrofóbico das minhas recordações. Ela parecia uma muda, sem mover pestana se quer. Agora com toda a palma da mão apertando meu pulso. Um poder plural mantinha-me entorpecido, não sei de onde vinha, mas sabia que ela o portava.

Houvéramos deixado os lábios entreabertos, tanto ela quanto eu. Via seu bafo quente subir aos ares depois de fazer suar as pontinhas de seus dentes amarelados. Um desejo, isso. Sentia a fervura do beijo mesmo antes de concretizá-lo. Ouvia, na sutileza das suas palavras, a resposta a uma pergunta feita há minutos, talvez séculos, se bem parar para pensar. Pareceu-me relutante, uma vontade impedida, uma confusão ad libitum ela insistia em perpetuar.

- Só se você me amar. Diga que me ama!

Não compreendi de logo, mas pus-me a analisar. Em verdade, Ana Luzia era, com todos os sofismas, uma mulher frágil e dependente do amor. Só que fez questão de erigir para si uma carapaça confortável de mulher brava, que, de fato, não deixava de ser verossímil, mas que escamoteava a mais premente precisão de um algo mais sensível, se neste termo posso colocar.

- Um momento, respondi. Só lhe pedi para enamorar-se por mim, que lhe tenho grande apreço e aprecio seu jeito, sua força e toda esta determinação no tratar da vida. Até o ápice do amor há uma considerável distância e, mesmo com a mais forte das intenções, não se chega lá, assim, de prontidão.

Seus olhos ganharam uma opacidade relevante. Seus dedos desataram-se e o sangue pôde voltar a circular em minha mão. Notei mesmo que seus lábios-cor-de-cereja tremilicavam no desertar das palavras. Não era aquela a mulher pela qual nutri uma sensação delicada: parecia ferida num ponto crucial da sua pseudo-majestade. Sorriu-me algo mais que um simples desconforto. Naquela noite senti uma culpa que se agigantava geometricamente se comparada à descomunal semgracisse de Ana Luzia. Aqueci-a com outra tentativa:

- Podemos tentar?

Não me apercebi, mas ela não estava mais ali. À minha frente algo de frustrado, uma massa imediatista disforme, minada pela impossibilidade da construção tijolo-a-tijolo, um-a-um, de uma relação. Nem o sorriso amarelecido conseguiu destituir da sua fronte. Não mais tão bela nem tão mais seca. Desmaiei em mim. Naufragado neste meu jeito pachola, não pude verificar a real necessidade daquela mulher. Talvez por ser assaz fracote e viver à procura de quem seja meu oposto, talvez por desconhecer os contra-sensos quando estes, por vezes, parecem-me bastante para enxergar o mistério nos olhares perdidos das pessoas.

O silêncio nos perseguiu por data longa. Ela, minha vizinha de sala no consultório, deixou de almoçar no mesmo restaurante e mesmo de passar na copa para pegar a xícara de café que sempre me oferecia no final dos dias de muito atendimento. Longos dias de uma mudez imposta pela crueldade da falta de sentido até que soube: estava para se casar em poucos meses. Felicidades, exclamei. Como somos todos tão estranhos...

fevereiro 15, 2006


Um corpo rumoreja, numa queda infinita.

by Garry Winogrand

fevereiro 12, 2006

Diário dos sentidos II

"In Thoughts of You" - Jack Vettriano

03 de maio de 1950

Com o tempo se conhece o desgaste do mundo. E compreende-se que o fito dos encontros é deixar esta amargura sublingual e tingir de negro o céu da boca. Toda teoria é uma burla e posso forjar a minha própria. Depois do prazer percebo o quanto seu gosto alucina-me e deixo-me inerte sob seu jugo, saboreando a beleza dos seus pêlos por sob os lençóis. É bom. Desisto então da solitude, desarrumo minhas malas e permito-me permanecer. Sua língua prende-me e pretende-me quando, assaz desejosa, percorre meus cumes, desbrava o desconhecido e abriga-se em meus relevos. Chove em mim e estas águas abluem-me manancialmente. Até que uma noite desperto-me escurecida e ouço o rumor dos seus passos em meu chão e sei serem passos de nunca mais. Então volto a perceber os insetos correndo por todos os cantos, as teias sobre os retratos e a mancha verdescurecida alastrando-se pelas paredes, velozmente. Ai sim é quando descubro: mesmo com os beijos, os carinhos, as entregas e os gozos mantive entre os dedos, seguro por instantes, não o homem, ou a esperança, mas o mistério.

fevereiro 07, 2006

O Real me Choca-cá-cá-cá.

Thomas Hawk

Quero trocar essa cara. Quero trocar essa cara amassada e bandida. Quero foder com ela e deixá-la partida. Vou esquecer os Vermont´s, ou os Chiq´s e essa cara, essa cara de senvergonhice. Quero trocar esta cara. Quem sabe um cachorrão pega ela de jeito e troco a cara e o peito, êpa!, mas o peito tem jeito. Vou mesmo trocar é essa cara lavada, deslavada de uma só paulada. Brinca não. Quero trocar essa cara, o corpo e o coração. Por que não?Quem sabe trocando você inteira, não pare, eu, de pensar besteira.*

*(Baseado em fatos s-u-r-r-e-a-i-s)

Coisa minha.

Despertei-me hoje cedo, sol nem havia espancado-me com seus primeiros brandos raios porque não nascido. Digo despertei-me porque não foi preciso recursos outros que não o próprio corpo para apenas despertar, mas o fiz de supetão. De fato passara a noite de forma desconfortável. Uma delicada indiferença dominava-me. Devaneios. Ainda na penumbra decidi procurar por alguma medicina para a alma, algo que não se configurasse placebo. Dei vida à luz do pequeno abajur citrino plantado ao lado da minha cama. De imediato pousei os olhos sobre um volume azul, capa rígida, Mario de Andrade / Poesias Completas, a jazer sobre a poeira do móvel escuramadeirado. Enlacei-o entre os dedos e folheei inadvertidamente, ao menos assim pretendi, até que uma frase, entre tantas, brilhou no lusco-fusco da iniciada manhã:

“Todo escritor acredita na valia do que escreve. Si mostra é por vaidade. Si não mostra é por vaidade também.”

Não pude permanecer tão indiferente assim. Acho que o Mario sabia bem do que dizia. A solução qualquer, ainda não cheguei, apesar da sabedoria do mestre. Apenas um acalmar para um momento de titubeio.

Os dias seguirão.

fevereiro 05, 2006

Diálogo errado de dois amantes.

Como pode acabar um sentimento que ao longo do tempo criou bases rochosas? Como pode a destemperança invadir corações em sintonia e relegar à sensaboria uma vontade de ficar, outrora ardente em nossos amantes? O que explicar quando numa manhã os adeuses tornam-se irrefutáveis e tão certos quanto a aurora que mais um dia se escancara por sobre nossas cabeças? Aqui, neste momento tão eterno e vulgar, o desaconchego atinge o zênite. Enquanto evapora-se, da relva, o orvalho, desaparecem, idem, as lágrimas desperdiçadas na madrugada. O rapaz-de-roupas-amassadas não despertou, encontrou-o aceso, ainda, os primeiros raios solares, sua cor era pálida, de esverdeada leveza perdida, e trazia, pesaroso, a certeza do fim. Já o outro-meio-cabisbaixo-menos-arrasado sabia ser a situação insustentável, ainda mais agora que lhe parecia tudo descabido. O não desjejum deixava o rapaz-de-roupas-amassadas fraco. A nolição espargira-se no ar. O re-encontro com a ex-namorada, fez o outro-meio-cabisbaixo-menos-arrasado viver um déjà vu e ter a esperança de um retorno, ainda que falseado. Não poderia permanecer, o futuro seria mais que imperfeito, sem ponderações, afinal, não haveria mais lugar.

O olhar desmaiado de um mirava, na opacidade do espelho sujo de lembranças, a silhueta do outro. Ecoava no quarto um respirar franzino, findando segundo-a-segundo, des-va-ne-ci-da-men-te. Entreolharam-se de soslaio, ao acaso, dissimulando eles, para não terem de constatar, um nas feições do outro, o sabor sanguíneo da derrota do amor. Nesta hora nem o “foi bom enquanto durou” poderia remediar. Inopinadamente um grito fez as cortinas tremerem, na verdade o ultimo desabafo choroso de um dos dois, não se sabe ao certo de quem, e isso nem mais os lençóis nem as paredes nem a mobília poderiam contar-nos. Aquela tensão detinha-os, inamovíveis, até que lentamente foi possível se ouvir de lábios entreabertos o despencar de um dialogo curto, tanto quanto injusto, mas não há-de se falar em justiça quando o quesito é a dor de um amor negaceado.

Diz ۝:

- São destes olhos luminosos que escorrem, até mim, o poder dos desejos. Assim transformo-me. Deste lume, parece-me a vida tão mais contundente e a dor forjo como posso, como possível for. Quais sentidos deveríamos procurar em nossos corações, se as forças pelas quais almejamos não existem para mais nada a não ser consumirem-nos? Se já tentamos a fuga e o voltar se nos mostrou sempre como premente solução, não há porque repetir os erros já caducos. Como o cordeiro que retorna, diuturno, à amamentação, deste leite sempre intentaremos beber, fonte primaz do viver. Mirávamos o vale da morte, até nele podermos trafegar e, num único lastimar, preferir ter ficado onde os braços são macios e a água lenta e fria, pois perigávamos perder-nos do infinito, entre constelações outras, não reprimidas a tempo, não satisfeitas de todo. Menos pretendíamos o retorno de vistas baixas que o vencer inconcusso. Mas agora este é o chão e somos, já, sementes prontas a fincar nele as emoções, os respiros, o bradar dos vossos corações, a forca do entendimento, ou o lamento sem subterfúgios. É nosso o solo e assim vamos geminar.

Responde ۞:

- Desvencilhe-se de mim, neste instante, pois sou cavalgadura e desentendo de coisas outras, se não evidentes, misteriosas.

O vento matutino entrou tranqüilamente através da janela sem nem fazer questão de agitar o ramo de flores posto sobre o criado-mudo. Saiu como entrou, discreto, nem mesmo pôde aliviar o incêndio que ensandecia os poros dos nossos ex-amantes. Por entre as flores ao lado da cama, um pequeno aracnídeo revelou-se. Com muito desprezo por tudo que por ali até então se vira, deu-se a tecer um fino fio transparente e pegajoso para nele capturar seu desjejum. Enquanto a luz acesa do abajur bege-amarelado espraiava-se em sua inutilidade diurna, vencida pela jornada extra de funcionalidade disfuncional, já que agora o quarto, outrora ocupado por nossos protagonistas, resta deserto e os raios do astro rei deixam cada canto daquele ambiente cada vez mais clareado.

janeiro 29, 2006

Por trás do homem, as dúvidas.


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Não sei o nome do homem que por trás das sombras se esconde. Não conheço, dele, a face nem sinto a pele ou os dedos a roçarem meus lábios quando tento soçobrar seus motivos. Não busco a idéia que pode fazer fenecer, não sei se devo, não procuro encontrar o sentido dos dias sobejados. Vem ele ao meu lado, por trás, adiante: por todos os cantos. Esse é o homem. O silêncio silva em meus ouvidos ou outros, além das nuvens o mistério que desaparece em seus olhos, de onde busco o caldo azul-solidão, onde me deixo até a putrefação das tristezas. Quem é esse homem sem nome e sem endereço? Quem sou eu se não ele? Quem é ele se não eu?