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março 27, 2006

Encantada

Gostaria de ter cantado para as massas. Gostaria. Contentou-se, porém, com os poucos admiradores que sua voz melodramática conseguiu tocar de maneira especial ao longo dos anos. Sereia dos pervertidos e dos desesperançados, acostumou-se às faltas, principalmente de sentido, que a vida lhe apresentara. No camarim deserto sorria ao acaso, na boca portava um gosto amargo do mundo e entre os dedos um cigarro a desprender uma nesga de fumaça que lentamente subia e anuviava o ambiente. Um suor gotejava-lhe fronte a baixo. Um suor frio e desmedido a denunciar seu pavor. Não sabia quem no espelho a mirava, perdida que estava entre as quatro paredes e as sombras infinitas que a visitava diuturnamente. Lá fora uma noite carente de estrelas perpetuava o mal-estar dos desabrigados de toda espécie, inclusive o dela. Até que um som rompente estragou o sono sutil de quem, à entrada do cabaré, dormia sob o alpendre. As putas que dentro dormiam também se assustaram com o estampido mirrado, veloz, mas que se fez notar de prontidão. No camarim o espelho, agora vazio, refletia um nada, refletia a solidão.


by Alfred Stieglitz

março 20, 2006

Diário dos Sentidos III

by Lilya Corneli


13 de novembro de 1954

(Carta ao passado)


Fizemos tudo direitinho. D-i-r-e-i-t-i-n-h-o, não foi? Ainda podia sentir, até instantes atrás, a ansiedade daquele encontro. A lua já trilhava tranquilamente seu percurso naquele negrume forrado de estrelas, quando chegastes sobre teu cavalo branco-luzidio para tirar-me a solitude. Numa paragem recôndita dos meus devaneios, preparou-me um banquete: sorrisos, carinhos, meigos olhares, compreensão. Pôs-me a mesa, sentou-me delicadamente e apresentou-me à ilusão do mundo. Assenti à viagem com um leve brilho no olhar. Saboreamos tudo, por completo. Até pude sentir quando a fria lágrima escorrida dos olhos teus, molhou-me os seios, com contemplação. Uma noite perfeita, regada a promessas, planos e intenções. Inclusive entendi que querias entregar-te a mim e não hesitei em entregar-me a ti. Fluxo e refluxo. Cavalguei por bosques penumbrosos e teus arbustos escondiam o real. Não me preocupei porque sentia tua língua amistosa desfazer-me as elucubrações. Era só torpor. Tanto que aquele brilho ofuscava-me. Aprendi que nunca verei o lado oculta da lua, mesmo em noites de total eclipse. Contei as estrelas, inebriada que estava com as tuas emanações e o odor dos teus sentidos espraiados por entre minhas entranhas, até que em teus braços adormeci um sono pedregoso.

Um gosto de sonho amarrotado veio despertar-me logo nos primeiros raios solares. Não havia mais estrelas nem imensidão. Um vento perpetuo e de rajadas secas acorreu os quatro cantos do quarto oco. Você ao meu lado esquecido de tudo, sorriu-me um sorriso vazio e desapresentou-se irremediável. Um desejo canaz invadiu-me. Não conheci o teu olhar e resolvi sair enquanto a chuva lá fora não se precipitava catastrófica e eu poderia caminhar por outras sendas. Suas lágrimas se me reapresentaram em abundância, mas não tinha solução. Não mais. Cediço que desconhecia o homem que fora, até então, meu príncipe. Desisti dos sortilégios. O brilho feneceu e tratei de inumá-lo. Senti e também lhe chorei por uma eternidade. Chorei pelos afagos, pelos pesares e por acreditar que desta vida um dia levaríamos os milagres.

março 13, 2006

Mistério da Escuridão

É negra esta pele
Que cheira a mistério
Mistério
Que remete ao império
Depois de curvas ancadas
Sobr´elevados dispersos do poderio
Estabelecido
Pelo o reinado do sangue
Furtado
D´outras plagas
Que, se sabe, relegadas
Ao acaso do descaso com o caso
Infortúnio voluntário
Do orvalho ressecado
De gosto, na boca, do fel
Como pipas, soltas ao léu
Com tudo, mas sem nada
Porque eles queimaram aquele céu
O sofrer do povo da mordaça
Derruba o sufoco do mordaz
Que nada, quer nadar
Ou só correr, no retorno à liberdade
Da terra dizimada
É negra esta pele
E ser feliz, compele
Já que, no fundo, o balouçar da embarcação
Não o fez, nem de susto nem de surto
Padecer do coração

março 08, 2006

Um olhar

Diante do espelho, um abismo.
Sem escusas
Cerrou as pálpebras
Afastou-se
E preferiu não mergulhar.

Mas continuou, o abismo, lá
Dentro de si.


by Sarah Moon

março 03, 2006

Escrivinhador

by Gian Paolo Barbieri
O sol a pino, imponente e de brilho invulgar, clareava-lhe os caminhos tal qual a poderosa consciência a indicar-lhe a finalidade da vida: labor. Identificava bem o seu arado. Mãos ossudas traziam o peso dos anos de labuta. Se só ela dignifica o homem, ele, então, poderia considerar-se pleno. Maduro. O tempo houvera ensinado bem seu trabalho: preparação, semeadura, colheita. Várias etapas num único contexto. Aquele era seu campo, seu lugar e bem sabia tratar. Paciência de garimpeiro, contudo nem só por pedra era sua atenção. De pedra, às vezes, era seu caminho. Necessidade maior tinha de tratar bem a prima matéria. Primeiro capinar, tirar os excessos, os lixos, acabar com as daninhas.

Os sentidos tremiam, às vezes. Excitação. Diante do descampado, brancobservador, só percepção. Trabalho farto, rude, porém indispensável. Dobrava-se em reverências. Primeiro o oficio, e assim sabia fluir e confluir a liberdade. Eterno (re)fluxo. Arar a imaginação era, para ele, como arar a terra. Verossimilhança. Preparar o pensamento, semear idéias, adubar, regar, colher. Que a colheita sempre deveria ser abundante e diuturna, não teria como olvidar. As mãos magras, oblongadas, carregavam a calosidade na ponta dos dedos que sustinham a pena a correr pela folha em branco, lisa, ora suavemente ora com imensa sofreguidão. No deslizar do bico, a tinta era espalhada e montava letras, combinava palavras, harmonizava sentidos. Não era vã, a labuta com o texto. Dali a pouco, os frutos. O agricultor das letras trabalha a imensidão, propriedade produtiva, nunca devoluta, para o sustento do mundo. Vasta extensão sempre pronta para exploração: consciente, subconsciente.

Enquanto o sol seguia sua jornada, ciclo completo. A noite era, também, propícia à dedicação. Boas aragens inspiravam. Trabalho da alma, não tem preço. Seu galardão, sua paz. Tratava de semear com eficiência. Mudas de frases fortes para gerarem parágrafos consistentes. Latifúndio que, ao contrário de outros, servia à humanidade: todo verso, cada estrofe, cada poema, toda prosa. Desejo edaz. Nosso trabalhador, ciente está da perenidade do serviço. Prossegue. Persiste. Prospera. Profissional de arte valorosa. Não era barqueiro, sentinela, pipoqueiro, vendedor, advogado, não era nem falsário nem isento nem bandido. Escrivinhador, sim. Que não se desfaz da dor como complemento da satisfação. Inteira.

Dia e noite. Para o operário do verbo não teria tempo bom nem ruim. Os papéis precisavam ter valor. As palavras precisavam brotar, multiplicar, gerar filhos, netos, gerações. Os livros precisavam de substrato vital, de seiva bruta, prima sustentação. Parou por um instante só, o suor descia-lhe testa a baixo. As mãos recolheram a gota fria que se precipitava afoita e arremessou-a distante. Fração de segundos, eternidade para o universo. Então decidiu: mãos à obra.