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maio 17, 2006

E n t r e c o r p o


Um corpo corta a infinitude horizontal da minha quimera
E vasto, sacia a voracidade do meu desejo
Um corpo se enovela em mim se alimenta em mim
Arfa e me sufoca

Um corpo solto perambula por meus desertos
E minhas ruas em carne-viva

Se me ilumina em tardes de outono e cai

Um corpo violento me atropela
E translúcido em desesperos,
Na contra-mão das noites azuis, se revela

Um corpo outro me entremeia
Ecoa forte e saliente em meu desvão
Buscando a vontade frouxa
Lassidão

Enquanto {irremediavelmente} devagar
Escorro por entre seus dentes
E desapareço.



maio 13, 2006

Linda!

“A culpa é sua”, falou Linda completamente nua, diante do seu reflexo, alisando-se entre as pernas enquanto embaçava o espelho, preso à porta do armário posto ao lado da cama, com a quente respiração que propagava no ar, por suas narinas, CO2 em estado puro. Contudo, enquanto falava diante do espelho e com as suas delicadas mãos entre suas pernas desnudas, de delicadeza imensurável, não era a ela própria que Linda mirava, não era ela, a figura na imagem virtual, para quem ela fixamente olhava a repetir “A culpa é sua” em um tom tão profético quanto o mais profundo dos sermões, como quem sabe o que é o peso da palavra culpa, como quem precisa atribuir a outrem o resultado de seus próprios atos, como boa católica que era. Por cima dos lençóis serenamente azuis que revestiam o leito onde costumeiramente repousava, encontrava-se o alvo de tão carregado desabafo, rumor da tentativa de escamotar sentimentos vorazes imiscuídos em cada uma das suas células.

No pequeno criado-mudo que completava o conjunto dormitório com a cama, o guarda-roupas, a cômoda e os abajures, que, por sua vez, combinavam com as cortinas cor de amanhecer, jazia uma bíblia, com as páginas abertas que bailavam ao sabor do vento que no quarto adentrava suave e refrescante como toda a brisa de outono. Dançavam as páginas como se quisessem espalhar por todo o ambiente as palavras que Linda trazia na ponta da pequena língua rosada, as palavras que, sabia ela, nenhum conforto lhe incutia. Mesmo assim Linda conservava o livro sagrado aparente sobre o móvel para, quem sabe, poder ter a impressão de que teria algum apoio em noites de insônia ou, ainda, nas de sonhos ruins. Apenas o ruído do bailar das paginas de seda, finas e paradoxalmente pesadas pelo teor das palavras gravadas, entrecortava os silêncios estendidos na infinitude do intervalo entre um pensamento e outro.

As mãos agora alisavam os pêlos que desenhavam à perfeição seu púbis e a respiração, agora mais ofegante, voltava a tornar a lâmina de vidro reflexionado numa superfície fosca. Ela olhou o teto branco no mesmo momento em que foi assaltada por um acesso de riso descompassado como os passos que começara a desempenhar em direção ao seu repouso, verdadeiro leito de Procusto*. “A culpa é sua”, repetiram os lábios umedecidos por uma língua macia, já saciada. O espelho já estava a mostrar suas belas costas, enquanto em passos curtos punha-se a caminhar. Ainda estava extasiada, olhos vidrados como que banhados por substância psico-trópica, alucinógenas lágrimas de emoção. De sobre os lençóis o indeterminado sujeito ouvinte do monólogo sobressaltou-se numa estridente gargalhada.

Linda passou as mãos em seus cabelos negros e desgrenhados, deu mais exatos cinco passos, deitou na beira da cama e desferiu um beijo com gosto de sofreguidão naqueles outros lábios sorridentes e volumosos. “A culpa é sua, por ter-me feito amar você assim” ratificou numa frase agora completa. Então, neste instante preciso lhe subiu pela planta dos pés soltos no ar um quentume que enrubesceu sua pele e eriçou a penugem do seu entreperna, enquanto suas mãos magras e acriançadas percorriam lentamente o colo dos seios de sua cunhada. Duas almas trespassadas por um desejo, um sortilégio perene e delineador de existências.

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(*) n.a.: Reza a mitologia que Procusto foi um salteador, que prendia numa cama todos os que ele capturava, cortando os pés dos coitados que passavam do tamanho do leito e esticando quando era menor, a pessoa tinha de ficar do mesmo tamanho da cama. Então dizer que alguém se deitou no leito de Procusto é dizer que quem deita na “cama do pecado”, independente da vontade, sofre as conseqüências, tenha pecado por falta ou por excesso.

maio 05, 2006