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novembro 22, 2005

Mel-o-diosas

A Delana Valiños Gonzalez
De repente um sopro. Um sopro forte e acariciador que adentrou rápido e agitou seus cabelos. Arranhou-lhe a pele sã e com a mesma intensidade com que entrara, arremessou a porta na soleira. Um estrondo só, que só por um instante tomou conta dos seus ouvidos. Zum-zum-zum de vespa. Tummmm... e por um outro instante, rápido como um flash, o som do silêncio. Até que novamente, a agulha voltou a deslizar entre os sulcos enegrecidos do vinil: ritmo.

Do estéreo, as melodias formosas, coloridas de toda a sorte, invadiram sua alma, matizes multiformes que se misturavam ao sabor do contentamento, trazendo algo de reluzente à matéria, preenchendo, sem barreira ou qualquer outro meio de arrependimento, os desvãos. A vida assim parecia-lhe mais completa. Os ouvidos da alma não olvidavam os sons do universo, eterno tic-tac explosivo-criativo até às últimas conseqüências. Jazz descansava o corpo e floreava o espírito, aqui tudo renovava-lhe de sopro vital. Era primavera. Da janela o sopro era outro e vinha carregando os mesmos sabores perfumados de cores e alegrias. Sorvia-os inexaustivamente e com sofreguidão. Pequenas criaturinhas cheias de brilho tomavam-lhe o ambiente numa invasão sem resistências. Vinham e traziam, da beleza, os melhores contornos, distribuídos no bater das pequeninas, mas poderosas, asas. De repente tudo transfigurava-se e o aquecido das revelações, o delicado da existência, dominava-lhe, assaltando-lhe os sentidos. Já nem sentia os pés no chão, como uma flor que precisa do milagre do brotar para distribuir brilhos infinitos, precisava do arfar das emoções para descobrir-se, derreter o coração e manter-se fora do que insistiam em chamar de mundo. O seu era outro e apregoou nele outro nome, deu-lhe outra atribuição: era onde refugiava-se quando o lado mais escuro das constelações precipitava-se em privações. O imenso blues incutia-lhe a necessidade de cortar o anil com seus sonhos e permitir imiscuir-se em suas moléculas. Eterno oxigênio entre suas falanges agraciava sua pele. Para a alma o alimento: musica. Tintas infinitas: metamorfose. Verde do mar, branco do ar, amarelo do amar. Versos estendidos, alexandrinos, desbravadores. Era primavera e o sentido de beleza resvalava por todos os jardins: tulipas, rosas, orquídeas. Tantas cores, tantos sentidos. Como o jazz, as borboletas vieram mostrar-lhe o caminho, e os contornos que desenhavam no ar erguiam ruas, florestas, montanhas, corações, paladares outros, outras vozes que bailavam com as melodias do estéreo, suaves como o conteúdo do cálice que sorvia, sutis como os dedos da criação, sopro de possibilidades, outras sendas. As flores não estavam a sós, apenas ela, porém, não estava blue.

As paredes escancaradas da percepção eram um convite à imensidão. Fechara os olhos, já não se pertencia e mesmo assim viu a aspereza dos dias evaporar-se e perder-se no espaço oco entre a dor de ser e a beleza de existir. O mundo novo era sua criação prima, obra prima. A suavidade primaveril que primeiro chegou em sua alma, baniu os temores e soprou fundo o jazz e transportou-a, flor do próprio jardim, brilho do universo.

Entre uma música e outra, escutou, melodiosas: algo a chamava. Precisava partir.

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