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fevereiro 27, 2006

Assim

by Sarah Moon


Sucumbo às perscrutações, sorridentemente
Desencontro o depois esquecido entre o ar e o infinito
Fosse meu este mundo seu, dele faria universo
Que findaria... que findaria
Em mimmmmmmmmmmm

fevereiro 22, 2006

Falso Pachola

Surpreendi-me com a beleza seca de sua fronte. Os olhos hirtos em minha direção, mirando minhas saliências, minhas necessidades. Quedei-me inerte. Seus dedos cruzaram a mesa, por sobre a toalha de quadrados minúsculos, e roçaram a pele do meu antebraço para sentir o arrepio que a sua crueldade causava em mim. Gelei mais uma vez. Assim como gelava quando me escondia por detrás da porta para ver de perto os sussurros que papai e mamãe faziam de madrugada. Sussurros estes que culminavam num leve respirar, típico de quem acaba de retomar o fôlego, de ambos. Só identificava isso naquela escuridão, para logo em seguida, num silêncio, que de tão pesado, palpável, correr na pontinha dos dedos para o meu quarto e não dormir por causa dos ecos que aquele sexo (descobri, mais tarde, o nome) produzia em minha cabeça. Enregelado permaneci a aguardar que as faíscas dos seus dedos em minha pele incendiassem a toalha-xadrez.

Busquei nas profundezas a vontade que tive em tempos remotos. Minhas forças se me mostraram inúteis. Aquele era o lugar de onde não deveria sair: o fundo claustrofóbico das minhas recordações. Ela parecia uma muda, sem mover pestana se quer. Agora com toda a palma da mão apertando meu pulso. Um poder plural mantinha-me entorpecido, não sei de onde vinha, mas sabia que ela o portava.

Houvéramos deixado os lábios entreabertos, tanto ela quanto eu. Via seu bafo quente subir aos ares depois de fazer suar as pontinhas de seus dentes amarelados. Um desejo, isso. Sentia a fervura do beijo mesmo antes de concretizá-lo. Ouvia, na sutileza das suas palavras, a resposta a uma pergunta feita há minutos, talvez séculos, se bem parar para pensar. Pareceu-me relutante, uma vontade impedida, uma confusão ad libitum ela insistia em perpetuar.

- Só se você me amar. Diga que me ama!

Não compreendi de logo, mas pus-me a analisar. Em verdade, Ana Luzia era, com todos os sofismas, uma mulher frágil e dependente do amor. Só que fez questão de erigir para si uma carapaça confortável de mulher brava, que, de fato, não deixava de ser verossímil, mas que escamoteava a mais premente precisão de um algo mais sensível, se neste termo posso colocar.

- Um momento, respondi. Só lhe pedi para enamorar-se por mim, que lhe tenho grande apreço e aprecio seu jeito, sua força e toda esta determinação no tratar da vida. Até o ápice do amor há uma considerável distância e, mesmo com a mais forte das intenções, não se chega lá, assim, de prontidão.

Seus olhos ganharam uma opacidade relevante. Seus dedos desataram-se e o sangue pôde voltar a circular em minha mão. Notei mesmo que seus lábios-cor-de-cereja tremilicavam no desertar das palavras. Não era aquela a mulher pela qual nutri uma sensação delicada: parecia ferida num ponto crucial da sua pseudo-majestade. Sorriu-me algo mais que um simples desconforto. Naquela noite senti uma culpa que se agigantava geometricamente se comparada à descomunal semgracisse de Ana Luzia. Aqueci-a com outra tentativa:

- Podemos tentar?

Não me apercebi, mas ela não estava mais ali. À minha frente algo de frustrado, uma massa imediatista disforme, minada pela impossibilidade da construção tijolo-a-tijolo, um-a-um, de uma relação. Nem o sorriso amarelecido conseguiu destituir da sua fronte. Não mais tão bela nem tão mais seca. Desmaiei em mim. Naufragado neste meu jeito pachola, não pude verificar a real necessidade daquela mulher. Talvez por ser assaz fracote e viver à procura de quem seja meu oposto, talvez por desconhecer os contra-sensos quando estes, por vezes, parecem-me bastante para enxergar o mistério nos olhares perdidos das pessoas.

O silêncio nos perseguiu por data longa. Ela, minha vizinha de sala no consultório, deixou de almoçar no mesmo restaurante e mesmo de passar na copa para pegar a xícara de café que sempre me oferecia no final dos dias de muito atendimento. Longos dias de uma mudez imposta pela crueldade da falta de sentido até que soube: estava para se casar em poucos meses. Felicidades, exclamei. Como somos todos tão estranhos...

fevereiro 15, 2006


Um corpo rumoreja, numa queda infinita.

by Garry Winogrand

fevereiro 12, 2006

Diário dos sentidos II

"In Thoughts of You" - Jack Vettriano

03 de maio de 1950

Com o tempo se conhece o desgaste do mundo. E compreende-se que o fito dos encontros é deixar esta amargura sublingual e tingir de negro o céu da boca. Toda teoria é uma burla e posso forjar a minha própria. Depois do prazer percebo o quanto seu gosto alucina-me e deixo-me inerte sob seu jugo, saboreando a beleza dos seus pêlos por sob os lençóis. É bom. Desisto então da solitude, desarrumo minhas malas e permito-me permanecer. Sua língua prende-me e pretende-me quando, assaz desejosa, percorre meus cumes, desbrava o desconhecido e abriga-se em meus relevos. Chove em mim e estas águas abluem-me manancialmente. Até que uma noite desperto-me escurecida e ouço o rumor dos seus passos em meu chão e sei serem passos de nunca mais. Então volto a perceber os insetos correndo por todos os cantos, as teias sobre os retratos e a mancha verdescurecida alastrando-se pelas paredes, velozmente. Ai sim é quando descubro: mesmo com os beijos, os carinhos, as entregas e os gozos mantive entre os dedos, seguro por instantes, não o homem, ou a esperança, mas o mistério.

fevereiro 07, 2006

O Real me Choca-cá-cá-cá.

Thomas Hawk

Quero trocar essa cara. Quero trocar essa cara amassada e bandida. Quero foder com ela e deixá-la partida. Vou esquecer os Vermont´s, ou os Chiq´s e essa cara, essa cara de senvergonhice. Quero trocar esta cara. Quem sabe um cachorrão pega ela de jeito e troco a cara e o peito, êpa!, mas o peito tem jeito. Vou mesmo trocar é essa cara lavada, deslavada de uma só paulada. Brinca não. Quero trocar essa cara, o corpo e o coração. Por que não?Quem sabe trocando você inteira, não pare, eu, de pensar besteira.*

*(Baseado em fatos s-u-r-r-e-a-i-s)

Coisa minha.

Despertei-me hoje cedo, sol nem havia espancado-me com seus primeiros brandos raios porque não nascido. Digo despertei-me porque não foi preciso recursos outros que não o próprio corpo para apenas despertar, mas o fiz de supetão. De fato passara a noite de forma desconfortável. Uma delicada indiferença dominava-me. Devaneios. Ainda na penumbra decidi procurar por alguma medicina para a alma, algo que não se configurasse placebo. Dei vida à luz do pequeno abajur citrino plantado ao lado da minha cama. De imediato pousei os olhos sobre um volume azul, capa rígida, Mario de Andrade / Poesias Completas, a jazer sobre a poeira do móvel escuramadeirado. Enlacei-o entre os dedos e folheei inadvertidamente, ao menos assim pretendi, até que uma frase, entre tantas, brilhou no lusco-fusco da iniciada manhã:

“Todo escritor acredita na valia do que escreve. Si mostra é por vaidade. Si não mostra é por vaidade também.”

Não pude permanecer tão indiferente assim. Acho que o Mario sabia bem do que dizia. A solução qualquer, ainda não cheguei, apesar da sabedoria do mestre. Apenas um acalmar para um momento de titubeio.

Os dias seguirão.

fevereiro 05, 2006

Diálogo errado de dois amantes.

Como pode acabar um sentimento que ao longo do tempo criou bases rochosas? Como pode a destemperança invadir corações em sintonia e relegar à sensaboria uma vontade de ficar, outrora ardente em nossos amantes? O que explicar quando numa manhã os adeuses tornam-se irrefutáveis e tão certos quanto a aurora que mais um dia se escancara por sobre nossas cabeças? Aqui, neste momento tão eterno e vulgar, o desaconchego atinge o zênite. Enquanto evapora-se, da relva, o orvalho, desaparecem, idem, as lágrimas desperdiçadas na madrugada. O rapaz-de-roupas-amassadas não despertou, encontrou-o aceso, ainda, os primeiros raios solares, sua cor era pálida, de esverdeada leveza perdida, e trazia, pesaroso, a certeza do fim. Já o outro-meio-cabisbaixo-menos-arrasado sabia ser a situação insustentável, ainda mais agora que lhe parecia tudo descabido. O não desjejum deixava o rapaz-de-roupas-amassadas fraco. A nolição espargira-se no ar. O re-encontro com a ex-namorada, fez o outro-meio-cabisbaixo-menos-arrasado viver um déjà vu e ter a esperança de um retorno, ainda que falseado. Não poderia permanecer, o futuro seria mais que imperfeito, sem ponderações, afinal, não haveria mais lugar.

O olhar desmaiado de um mirava, na opacidade do espelho sujo de lembranças, a silhueta do outro. Ecoava no quarto um respirar franzino, findando segundo-a-segundo, des-va-ne-ci-da-men-te. Entreolharam-se de soslaio, ao acaso, dissimulando eles, para não terem de constatar, um nas feições do outro, o sabor sanguíneo da derrota do amor. Nesta hora nem o “foi bom enquanto durou” poderia remediar. Inopinadamente um grito fez as cortinas tremerem, na verdade o ultimo desabafo choroso de um dos dois, não se sabe ao certo de quem, e isso nem mais os lençóis nem as paredes nem a mobília poderiam contar-nos. Aquela tensão detinha-os, inamovíveis, até que lentamente foi possível se ouvir de lábios entreabertos o despencar de um dialogo curto, tanto quanto injusto, mas não há-de se falar em justiça quando o quesito é a dor de um amor negaceado.

Diz ۝:

- São destes olhos luminosos que escorrem, até mim, o poder dos desejos. Assim transformo-me. Deste lume, parece-me a vida tão mais contundente e a dor forjo como posso, como possível for. Quais sentidos deveríamos procurar em nossos corações, se as forças pelas quais almejamos não existem para mais nada a não ser consumirem-nos? Se já tentamos a fuga e o voltar se nos mostrou sempre como premente solução, não há porque repetir os erros já caducos. Como o cordeiro que retorna, diuturno, à amamentação, deste leite sempre intentaremos beber, fonte primaz do viver. Mirávamos o vale da morte, até nele podermos trafegar e, num único lastimar, preferir ter ficado onde os braços são macios e a água lenta e fria, pois perigávamos perder-nos do infinito, entre constelações outras, não reprimidas a tempo, não satisfeitas de todo. Menos pretendíamos o retorno de vistas baixas que o vencer inconcusso. Mas agora este é o chão e somos, já, sementes prontas a fincar nele as emoções, os respiros, o bradar dos vossos corações, a forca do entendimento, ou o lamento sem subterfúgios. É nosso o solo e assim vamos geminar.

Responde ۞:

- Desvencilhe-se de mim, neste instante, pois sou cavalgadura e desentendo de coisas outras, se não evidentes, misteriosas.

O vento matutino entrou tranqüilamente através da janela sem nem fazer questão de agitar o ramo de flores posto sobre o criado-mudo. Saiu como entrou, discreto, nem mesmo pôde aliviar o incêndio que ensandecia os poros dos nossos ex-amantes. Por entre as flores ao lado da cama, um pequeno aracnídeo revelou-se. Com muito desprezo por tudo que por ali até então se vira, deu-se a tecer um fino fio transparente e pegajoso para nele capturar seu desjejum. Enquanto a luz acesa do abajur bege-amarelado espraiava-se em sua inutilidade diurna, vencida pela jornada extra de funcionalidade disfuncional, já que agora o quarto, outrora ocupado por nossos protagonistas, resta deserto e os raios do astro rei deixam cada canto daquele ambiente cada vez mais clareado.