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maio 13, 2006

Linda!

“A culpa é sua”, falou Linda completamente nua, diante do seu reflexo, alisando-se entre as pernas enquanto embaçava o espelho, preso à porta do armário posto ao lado da cama, com a quente respiração que propagava no ar, por suas narinas, CO2 em estado puro. Contudo, enquanto falava diante do espelho e com as suas delicadas mãos entre suas pernas desnudas, de delicadeza imensurável, não era a ela própria que Linda mirava, não era ela, a figura na imagem virtual, para quem ela fixamente olhava a repetir “A culpa é sua” em um tom tão profético quanto o mais profundo dos sermões, como quem sabe o que é o peso da palavra culpa, como quem precisa atribuir a outrem o resultado de seus próprios atos, como boa católica que era. Por cima dos lençóis serenamente azuis que revestiam o leito onde costumeiramente repousava, encontrava-se o alvo de tão carregado desabafo, rumor da tentativa de escamotar sentimentos vorazes imiscuídos em cada uma das suas células.

No pequeno criado-mudo que completava o conjunto dormitório com a cama, o guarda-roupas, a cômoda e os abajures, que, por sua vez, combinavam com as cortinas cor de amanhecer, jazia uma bíblia, com as páginas abertas que bailavam ao sabor do vento que no quarto adentrava suave e refrescante como toda a brisa de outono. Dançavam as páginas como se quisessem espalhar por todo o ambiente as palavras que Linda trazia na ponta da pequena língua rosada, as palavras que, sabia ela, nenhum conforto lhe incutia. Mesmo assim Linda conservava o livro sagrado aparente sobre o móvel para, quem sabe, poder ter a impressão de que teria algum apoio em noites de insônia ou, ainda, nas de sonhos ruins. Apenas o ruído do bailar das paginas de seda, finas e paradoxalmente pesadas pelo teor das palavras gravadas, entrecortava os silêncios estendidos na infinitude do intervalo entre um pensamento e outro.

As mãos agora alisavam os pêlos que desenhavam à perfeição seu púbis e a respiração, agora mais ofegante, voltava a tornar a lâmina de vidro reflexionado numa superfície fosca. Ela olhou o teto branco no mesmo momento em que foi assaltada por um acesso de riso descompassado como os passos que começara a desempenhar em direção ao seu repouso, verdadeiro leito de Procusto*. “A culpa é sua”, repetiram os lábios umedecidos por uma língua macia, já saciada. O espelho já estava a mostrar suas belas costas, enquanto em passos curtos punha-se a caminhar. Ainda estava extasiada, olhos vidrados como que banhados por substância psico-trópica, alucinógenas lágrimas de emoção. De sobre os lençóis o indeterminado sujeito ouvinte do monólogo sobressaltou-se numa estridente gargalhada.

Linda passou as mãos em seus cabelos negros e desgrenhados, deu mais exatos cinco passos, deitou na beira da cama e desferiu um beijo com gosto de sofreguidão naqueles outros lábios sorridentes e volumosos. “A culpa é sua, por ter-me feito amar você assim” ratificou numa frase agora completa. Então, neste instante preciso lhe subiu pela planta dos pés soltos no ar um quentume que enrubesceu sua pele e eriçou a penugem do seu entreperna, enquanto suas mãos magras e acriançadas percorriam lentamente o colo dos seios de sua cunhada. Duas almas trespassadas por um desejo, um sortilégio perene e delineador de existências.

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(*) n.a.: Reza a mitologia que Procusto foi um salteador, que prendia numa cama todos os que ele capturava, cortando os pés dos coitados que passavam do tamanho do leito e esticando quando era menor, a pessoa tinha de ficar do mesmo tamanho da cama. Então dizer que alguém se deitou no leito de Procusto é dizer que quem deita na “cama do pecado”, independente da vontade, sofre as conseqüências, tenha pecado por falta ou por excesso.

3 comentários:

Anônimo disse...

"ah bruta flor do querer! ah bruta flor bruta flor!"
a culpa é da culpa...
beijo

Aerodrama disse...

Um belo escrito sem dúvida alguma!!!

Um abraço,
Aerodrama.

Marina disse...

Que lindo texto! De uma sutileza palpável... Se existe culpa, já não importa...


Também gostei do seu (en)canto. :)

Vou voltar mais vezes.

Beijos!