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abril 29, 2006

Sombroso.

“Por um motivo ou outro, sempre lavarei minha honra com o sangue da humanidade.” (autor desconhecido)

Via o real da vida escorrer por aquelas pernas e sentia a fedentina pestear o ar. Odor de morte. Tentou voltar atrás e sentiu que já não tinha como, um retorno agora seria ineficaz. As paredes, entretecidas de madeira que apodrecia mais e mais a cada nova estação, sempre oprimiram-no. Menino, cuidado, este mundo tá cheio de otário, dizia sua mãe, voz eterna em sua consciência. E agora aquilo, aquilo. A viscosidade tinha um brilho morno e não fosse a cor vibrante juraria que guardado, ali, havia algo de sublime. Sobrevivente de uma corrupção tentacular, desde o inicio degradante, pôs as mãos na cabeça, um suor desesperado corria testa a baixo. A camisa, molhada da água da chuva que chegava através da janela aberta às suas costas, grudara à sua compleição deserta. O barraco já dava sinais da inundação lenta e sofrida que chegava sem cerimônias por todas as frestas. Num dos cantos, a podridão.

Avisara que nunca tinha feito aquilo antes, que era loucura, contudo ela insistiu e fê-lo comprometer-se. Deu palavra e não seria otário de desfazer o trato, afinal a culpa pululava também em suas veias. Não demorou muito, três dias ou quatro, e ela apresentou-lhe as folhagens, ervas populares, medicina brava, não tinha mesmo como ir à farmácia, ou procurar a dona benzedeira que também era parteira de práticas gerais, tinha não. Demorou mesmo ainda para ela adentrar a baiúca com a substância já no bucho, danada a fazer efeito. Estava feito louca, dizia sentir as contrações, que sofria de dor. A dor.

Ele tinha de fazer a sua parte, o principal a garota tinha já providenciado. Não ia passar por otário. Ela chegou, jogou-se ao chão, fazia força, parecia ter aprendido cedo. Pediu para ele posicionar-se entre as suas pernas escancaradas. Ele viu que o real da vida estava ali, escorrendo da boceta para o chão. Agachou, sim, e sentia um nojo de tudo, uma repugnância quase insuportável. Quando o bolo de carne em avançado estado de composição iniciou por aparecer ele começou a puxar, ao comando dela, primeiro desajeitadamente e imediatamente em seguida, após um grito desesperado da garota, numa violência desmedida, até a completa remoção do pré-ser, arremessado para um dos cantos do único cômodo que compunha o local.

Não houve choro, alias, não fosse o intenso cair das águas sobre as telhas velhas, não se ouviria nada ali, nem um suspiro. Ela sobre uma poça sangrenta, diluída pela invasão da chuva, nem mesmo movia pestanas e parecia nem respirar, não dava para saber. Ele encostou à parede e deixou a janela às costas, inerte, lançando as mãos em baixo da água que chuviscava para dentro do barraco, na tentativa de deixá-las limpas. Inútil, já estava comprometido. Nem a dor, e principalmente esta, pôde ser limpa. Acorreu-lhe uma quentura retesada e uma vertigem tomou-lhe conta dos brios. Quatro passos e estava diante da porta, que de prontidão já era fechada atrás de si. Foi-se. O céu desabou naquela tarde, e durante a semana choveu largamente. Só ele não choveu. Nunca mais.

7 comentários:

Nirton Venancio disse...

Ivã, passo sempre pelo seu Outubro. Leio, me comovo, me incomodo, me vejo, me desconheço rio, choro, enfim, nenhum escrito deixa de me atingir. Só tenho essa mania de ler e ir embora, distraído que sou...

Anônimo disse...

há coisas que devemos mesmo fazer, e serão feitas: por comprometimento, por cumplicidade, por coragem ou até mesmo por medo. e as consequências, assim como os atos, também são inevitáveis. ivã, grande abraço, meu caro.

Aerodrama disse...

Olá,
Tudo bem ??? Como vai ?? Gostaria de agradecer sua visita ao meu blog !!! Fico muito grato mesmo!!
Seus escritos são muito bons, muito bons mesmo, podes contar com minha presença por aqui.

Um abraço,
Aerodrama.

Claudio Eugenio Luz disse...

Narrativa das melhores, meu caro; escorre pelos vãos e vai num crescente encontrar seu desfecho nas aguas - quase, da coisas humanas.

hábraços

claudio

Lua em Libra disse...

A chuva não lava as culpas. O medo desbarranca nas ruas, nos casebres, nas pernas entreabertas após o desejo, desfecho consumado, despejo consumindo a vida até sempre. Gostei tanto deste teu texto, Ivã.

Parabéns

Nirton Venancio disse...

Oi, Ivã, passando por aqui... abraço!

Anônimo disse...

Essa chuva-lágrima, vestígio de alguma dor-arrependimento, acabou secando nos olhos do menino, vetando qualquer possibilidade de voltar atrás, nem que apenas para revisitar sua culpa e encontrar-se novamente em um processo de humanização.
Ou essa chuva-gozo também, que nunca mais desabará por entre as pernas do menino, como uma espécie de memória externa, uma marca, de que um dia o líquido-viva misturou-se ao sentido da consequência-morte.
Seu conto doeu-rasgando.
Mas...dor-dilaceramento-necessário.
Muito bom, Ivã.

Beijos

Jana

P.S: Passe na minha casa, o Noturnando. Espero você para uma mistura de leituras e de perspetivas, porque é da polifonia que somos contruídos discursivamente.

http://naselva.com/jana

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Beijos