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dezembro 09, 2005

Diário dos sentidos

"Nu Sentado" de Edvard Munch


17 de agosto de 1945

Com o tempo fui aprendendo que se entregar é o mesmo que ir sutilmente se perdendo, ou não. As fotografias amarelecem nas paredes. Todas elas perdidas em mim, em algum lugar no córtex. As unhas crescem, os cabelos caem, e sono já nem tenho. Os dias avançam sobre as noites e vice-versa. Não cresci num mundo de fantasia. Minha mãe sempre dizia: as coisas têm de melhorar. No entanto, as horas foram passando, os pães apodreceram e não quis comer os fungos que por ali se acumularam, de uma hora para outra, eles não aplacariam a fome que percorria minha solidão. Comer o tempo significa mais que o espremer para tirar dele os segundos perdidos. Sinto-o dentro de mim. E à medida que sinto o vento invadir as janelas encerradas e depositar sobre minhas orelhas as areias desérticas do passado, parece que nada fui nestas terras: nem serpente nem maçã nem ramagem nem parasita nem vencedora nem vencedora. Construí meu universo uno demais. E senti prazer. Quase o mesmo prazer que escorria por minhas falanges escuras, por meus pêlos crespos: ai sim perdia, eu, o sentido de tudo. Até notar a viscosidade sanguínea enrubescer minhas extremidades. Esquecia-me entre os lençóis e os ácaros, toda a noite. Sempre a esperá-lo. Até que certa feita, após jantar as baratas, acordo e vejo os vultos percorrendo os cantos úmidos da casa. Chovia lá fora e toda sorte de goteira ousara precipitar-se por sobre o carpete, os livros, o sofá e a televisão. E as imagens agora percorriam as minhas entranhas, também úmidas, mas ardentes de paixão.

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