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dezembro 09, 2005

Sorte de lembrar

Ouço o rubro das veias chamar meu nome. No entanto, estou morto. Na verdade ouço a poeira trincolejar no vidro do ataúde. Daqui de dentro mais parece uma sinfonia de tambores africanos da Bahia. Cortesia dos amadores que fingem cantar, um som disforme e peculiar. Gente essa que não aprendeu a rezar. Minha despedida teria de ser sociável, como nunca fui.

Alguém trouxe rosas, talvez mamãe, mas não a vejo por aqui. Meu pai deveria trazer as tulipas e os pássaros os galhos quebradinhos e toda sorte de material de construção para soerguerem, aqui perto, seus ninhos, seus cantos ao menos ainda apetecem-me. Mas vejo apenas desconhecidos. Todos eles.

Ao menos agora dormirei infinitamente o sono dos ludibriados. Sim, ludibriado pela vida. Enganei-me o quanto pude, e pude muito pouco. Tive fé enquanto animal domesticado, só que não demorei por cair em contradição e descontento.

Um dia notei que as raízes cresciam por baixo da minha residência. A casa estava cada dia mais vulnerável. Até que as paredes começaram a cair: primeiro descascou a pintura e em seguida caiu o reboco. Tudo numa rapidez impensável. Não me assombrei. Neste tempo eu já era mais zumbi que gente. E as palmeiras baloiçavam atentas aos ventos mais complexos daquela estação. Por fim o telhado despencou sobre a cama no momento em que dormia. Por isso não mais acordei. Não tive nem tempo de sonhar. Isso por toda uma vida. Não se assuste comigo.

Agora não estou mais desabrigado. E tenho até estranhos chorando por mim. Não tenho as flores todas que requeri e trago a alma vazia. Difícil é não compreender: nesta vida eu morri foi de fome.

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