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fevereiro 22, 2006

Falso Pachola

Surpreendi-me com a beleza seca de sua fronte. Os olhos hirtos em minha direção, mirando minhas saliências, minhas necessidades. Quedei-me inerte. Seus dedos cruzaram a mesa, por sobre a toalha de quadrados minúsculos, e roçaram a pele do meu antebraço para sentir o arrepio que a sua crueldade causava em mim. Gelei mais uma vez. Assim como gelava quando me escondia por detrás da porta para ver de perto os sussurros que papai e mamãe faziam de madrugada. Sussurros estes que culminavam num leve respirar, típico de quem acaba de retomar o fôlego, de ambos. Só identificava isso naquela escuridão, para logo em seguida, num silêncio, que de tão pesado, palpável, correr na pontinha dos dedos para o meu quarto e não dormir por causa dos ecos que aquele sexo (descobri, mais tarde, o nome) produzia em minha cabeça. Enregelado permaneci a aguardar que as faíscas dos seus dedos em minha pele incendiassem a toalha-xadrez.

Busquei nas profundezas a vontade que tive em tempos remotos. Minhas forças se me mostraram inúteis. Aquele era o lugar de onde não deveria sair: o fundo claustrofóbico das minhas recordações. Ela parecia uma muda, sem mover pestana se quer. Agora com toda a palma da mão apertando meu pulso. Um poder plural mantinha-me entorpecido, não sei de onde vinha, mas sabia que ela o portava.

Houvéramos deixado os lábios entreabertos, tanto ela quanto eu. Via seu bafo quente subir aos ares depois de fazer suar as pontinhas de seus dentes amarelados. Um desejo, isso. Sentia a fervura do beijo mesmo antes de concretizá-lo. Ouvia, na sutileza das suas palavras, a resposta a uma pergunta feita há minutos, talvez séculos, se bem parar para pensar. Pareceu-me relutante, uma vontade impedida, uma confusão ad libitum ela insistia em perpetuar.

- Só se você me amar. Diga que me ama!

Não compreendi de logo, mas pus-me a analisar. Em verdade, Ana Luzia era, com todos os sofismas, uma mulher frágil e dependente do amor. Só que fez questão de erigir para si uma carapaça confortável de mulher brava, que, de fato, não deixava de ser verossímil, mas que escamoteava a mais premente precisão de um algo mais sensível, se neste termo posso colocar.

- Um momento, respondi. Só lhe pedi para enamorar-se por mim, que lhe tenho grande apreço e aprecio seu jeito, sua força e toda esta determinação no tratar da vida. Até o ápice do amor há uma considerável distância e, mesmo com a mais forte das intenções, não se chega lá, assim, de prontidão.

Seus olhos ganharam uma opacidade relevante. Seus dedos desataram-se e o sangue pôde voltar a circular em minha mão. Notei mesmo que seus lábios-cor-de-cereja tremilicavam no desertar das palavras. Não era aquela a mulher pela qual nutri uma sensação delicada: parecia ferida num ponto crucial da sua pseudo-majestade. Sorriu-me algo mais que um simples desconforto. Naquela noite senti uma culpa que se agigantava geometricamente se comparada à descomunal semgracisse de Ana Luzia. Aqueci-a com outra tentativa:

- Podemos tentar?

Não me apercebi, mas ela não estava mais ali. À minha frente algo de frustrado, uma massa imediatista disforme, minada pela impossibilidade da construção tijolo-a-tijolo, um-a-um, de uma relação. Nem o sorriso amarelecido conseguiu destituir da sua fronte. Não mais tão bela nem tão mais seca. Desmaiei em mim. Naufragado neste meu jeito pachola, não pude verificar a real necessidade daquela mulher. Talvez por ser assaz fracote e viver à procura de quem seja meu oposto, talvez por desconhecer os contra-sensos quando estes, por vezes, parecem-me bastante para enxergar o mistério nos olhares perdidos das pessoas.

O silêncio nos perseguiu por data longa. Ela, minha vizinha de sala no consultório, deixou de almoçar no mesmo restaurante e mesmo de passar na copa para pegar a xícara de café que sempre me oferecia no final dos dias de muito atendimento. Longos dias de uma mudez imposta pela crueldade da falta de sentido até que soube: estava para se casar em poucos meses. Felicidades, exclamei. Como somos todos tão estranhos...

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