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fevereiro 05, 2006

Diálogo errado de dois amantes.

Como pode acabar um sentimento que ao longo do tempo criou bases rochosas? Como pode a destemperança invadir corações em sintonia e relegar à sensaboria uma vontade de ficar, outrora ardente em nossos amantes? O que explicar quando numa manhã os adeuses tornam-se irrefutáveis e tão certos quanto a aurora que mais um dia se escancara por sobre nossas cabeças? Aqui, neste momento tão eterno e vulgar, o desaconchego atinge o zênite. Enquanto evapora-se, da relva, o orvalho, desaparecem, idem, as lágrimas desperdiçadas na madrugada. O rapaz-de-roupas-amassadas não despertou, encontrou-o aceso, ainda, os primeiros raios solares, sua cor era pálida, de esverdeada leveza perdida, e trazia, pesaroso, a certeza do fim. Já o outro-meio-cabisbaixo-menos-arrasado sabia ser a situação insustentável, ainda mais agora que lhe parecia tudo descabido. O não desjejum deixava o rapaz-de-roupas-amassadas fraco. A nolição espargira-se no ar. O re-encontro com a ex-namorada, fez o outro-meio-cabisbaixo-menos-arrasado viver um déjà vu e ter a esperança de um retorno, ainda que falseado. Não poderia permanecer, o futuro seria mais que imperfeito, sem ponderações, afinal, não haveria mais lugar.

O olhar desmaiado de um mirava, na opacidade do espelho sujo de lembranças, a silhueta do outro. Ecoava no quarto um respirar franzino, findando segundo-a-segundo, des-va-ne-ci-da-men-te. Entreolharam-se de soslaio, ao acaso, dissimulando eles, para não terem de constatar, um nas feições do outro, o sabor sanguíneo da derrota do amor. Nesta hora nem o “foi bom enquanto durou” poderia remediar. Inopinadamente um grito fez as cortinas tremerem, na verdade o ultimo desabafo choroso de um dos dois, não se sabe ao certo de quem, e isso nem mais os lençóis nem as paredes nem a mobília poderiam contar-nos. Aquela tensão detinha-os, inamovíveis, até que lentamente foi possível se ouvir de lábios entreabertos o despencar de um dialogo curto, tanto quanto injusto, mas não há-de se falar em justiça quando o quesito é a dor de um amor negaceado.

Diz ۝:

- São destes olhos luminosos que escorrem, até mim, o poder dos desejos. Assim transformo-me. Deste lume, parece-me a vida tão mais contundente e a dor forjo como posso, como possível for. Quais sentidos deveríamos procurar em nossos corações, se as forças pelas quais almejamos não existem para mais nada a não ser consumirem-nos? Se já tentamos a fuga e o voltar se nos mostrou sempre como premente solução, não há porque repetir os erros já caducos. Como o cordeiro que retorna, diuturno, à amamentação, deste leite sempre intentaremos beber, fonte primaz do viver. Mirávamos o vale da morte, até nele podermos trafegar e, num único lastimar, preferir ter ficado onde os braços são macios e a água lenta e fria, pois perigávamos perder-nos do infinito, entre constelações outras, não reprimidas a tempo, não satisfeitas de todo. Menos pretendíamos o retorno de vistas baixas que o vencer inconcusso. Mas agora este é o chão e somos, já, sementes prontas a fincar nele as emoções, os respiros, o bradar dos vossos corações, a forca do entendimento, ou o lamento sem subterfúgios. É nosso o solo e assim vamos geminar.

Responde ۞:

- Desvencilhe-se de mim, neste instante, pois sou cavalgadura e desentendo de coisas outras, se não evidentes, misteriosas.

O vento matutino entrou tranqüilamente através da janela sem nem fazer questão de agitar o ramo de flores posto sobre o criado-mudo. Saiu como entrou, discreto, nem mesmo pôde aliviar o incêndio que ensandecia os poros dos nossos ex-amantes. Por entre as flores ao lado da cama, um pequeno aracnídeo revelou-se. Com muito desprezo por tudo que por ali até então se vira, deu-se a tecer um fino fio transparente e pegajoso para nele capturar seu desjejum. Enquanto a luz acesa do abajur bege-amarelado espraiava-se em sua inutilidade diurna, vencida pela jornada extra de funcionalidade disfuncional, já que agora o quarto, outrora ocupado por nossos protagonistas, resta deserto e os raios do astro rei deixam cada canto daquele ambiente cada vez mais clareado.

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