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março 20, 2006

Diário dos Sentidos III

by Lilya Corneli


13 de novembro de 1954

(Carta ao passado)


Fizemos tudo direitinho. D-i-r-e-i-t-i-n-h-o, não foi? Ainda podia sentir, até instantes atrás, a ansiedade daquele encontro. A lua já trilhava tranquilamente seu percurso naquele negrume forrado de estrelas, quando chegastes sobre teu cavalo branco-luzidio para tirar-me a solitude. Numa paragem recôndita dos meus devaneios, preparou-me um banquete: sorrisos, carinhos, meigos olhares, compreensão. Pôs-me a mesa, sentou-me delicadamente e apresentou-me à ilusão do mundo. Assenti à viagem com um leve brilho no olhar. Saboreamos tudo, por completo. Até pude sentir quando a fria lágrima escorrida dos olhos teus, molhou-me os seios, com contemplação. Uma noite perfeita, regada a promessas, planos e intenções. Inclusive entendi que querias entregar-te a mim e não hesitei em entregar-me a ti. Fluxo e refluxo. Cavalguei por bosques penumbrosos e teus arbustos escondiam o real. Não me preocupei porque sentia tua língua amistosa desfazer-me as elucubrações. Era só torpor. Tanto que aquele brilho ofuscava-me. Aprendi que nunca verei o lado oculta da lua, mesmo em noites de total eclipse. Contei as estrelas, inebriada que estava com as tuas emanações e o odor dos teus sentidos espraiados por entre minhas entranhas, até que em teus braços adormeci um sono pedregoso.

Um gosto de sonho amarrotado veio despertar-me logo nos primeiros raios solares. Não havia mais estrelas nem imensidão. Um vento perpetuo e de rajadas secas acorreu os quatro cantos do quarto oco. Você ao meu lado esquecido de tudo, sorriu-me um sorriso vazio e desapresentou-se irremediável. Um desejo canaz invadiu-me. Não conheci o teu olhar e resolvi sair enquanto a chuva lá fora não se precipitava catastrófica e eu poderia caminhar por outras sendas. Suas lágrimas se me reapresentaram em abundância, mas não tinha solução. Não mais. Cediço que desconhecia o homem que fora, até então, meu príncipe. Desisti dos sortilégios. O brilho feneceu e tratei de inumá-lo. Senti e também lhe chorei por uma eternidade. Chorei pelos afagos, pelos pesares e por acreditar que desta vida um dia levaríamos os milagres.

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