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março 03, 2006

Escrivinhador

by Gian Paolo Barbieri
O sol a pino, imponente e de brilho invulgar, clareava-lhe os caminhos tal qual a poderosa consciência a indicar-lhe a finalidade da vida: labor. Identificava bem o seu arado. Mãos ossudas traziam o peso dos anos de labuta. Se só ela dignifica o homem, ele, então, poderia considerar-se pleno. Maduro. O tempo houvera ensinado bem seu trabalho: preparação, semeadura, colheita. Várias etapas num único contexto. Aquele era seu campo, seu lugar e bem sabia tratar. Paciência de garimpeiro, contudo nem só por pedra era sua atenção. De pedra, às vezes, era seu caminho. Necessidade maior tinha de tratar bem a prima matéria. Primeiro capinar, tirar os excessos, os lixos, acabar com as daninhas.

Os sentidos tremiam, às vezes. Excitação. Diante do descampado, brancobservador, só percepção. Trabalho farto, rude, porém indispensável. Dobrava-se em reverências. Primeiro o oficio, e assim sabia fluir e confluir a liberdade. Eterno (re)fluxo. Arar a imaginação era, para ele, como arar a terra. Verossimilhança. Preparar o pensamento, semear idéias, adubar, regar, colher. Que a colheita sempre deveria ser abundante e diuturna, não teria como olvidar. As mãos magras, oblongadas, carregavam a calosidade na ponta dos dedos que sustinham a pena a correr pela folha em branco, lisa, ora suavemente ora com imensa sofreguidão. No deslizar do bico, a tinta era espalhada e montava letras, combinava palavras, harmonizava sentidos. Não era vã, a labuta com o texto. Dali a pouco, os frutos. O agricultor das letras trabalha a imensidão, propriedade produtiva, nunca devoluta, para o sustento do mundo. Vasta extensão sempre pronta para exploração: consciente, subconsciente.

Enquanto o sol seguia sua jornada, ciclo completo. A noite era, também, propícia à dedicação. Boas aragens inspiravam. Trabalho da alma, não tem preço. Seu galardão, sua paz. Tratava de semear com eficiência. Mudas de frases fortes para gerarem parágrafos consistentes. Latifúndio que, ao contrário de outros, servia à humanidade: todo verso, cada estrofe, cada poema, toda prosa. Desejo edaz. Nosso trabalhador, ciente está da perenidade do serviço. Prossegue. Persiste. Prospera. Profissional de arte valorosa. Não era barqueiro, sentinela, pipoqueiro, vendedor, advogado, não era nem falsário nem isento nem bandido. Escrivinhador, sim. Que não se desfaz da dor como complemento da satisfação. Inteira.

Dia e noite. Para o operário do verbo não teria tempo bom nem ruim. Os papéis precisavam ter valor. As palavras precisavam brotar, multiplicar, gerar filhos, netos, gerações. Os livros precisavam de substrato vital, de seiva bruta, prima sustentação. Parou por um instante só, o suor descia-lhe testa a baixo. As mãos recolheram a gota fria que se precipitava afoita e arremessou-a distante. Fração de segundos, eternidade para o universo. Então decidiu: mãos à obra.

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