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março 27, 2006

Encantada

Gostaria de ter cantado para as massas. Gostaria. Contentou-se, porém, com os poucos admiradores que sua voz melodramática conseguiu tocar de maneira especial ao longo dos anos. Sereia dos pervertidos e dos desesperançados, acostumou-se às faltas, principalmente de sentido, que a vida lhe apresentara. No camarim deserto sorria ao acaso, na boca portava um gosto amargo do mundo e entre os dedos um cigarro a desprender uma nesga de fumaça que lentamente subia e anuviava o ambiente. Um suor gotejava-lhe fronte a baixo. Um suor frio e desmedido a denunciar seu pavor. Não sabia quem no espelho a mirava, perdida que estava entre as quatro paredes e as sombras infinitas que a visitava diuturnamente. Lá fora uma noite carente de estrelas perpetuava o mal-estar dos desabrigados de toda espécie, inclusive o dela. Até que um som rompente estragou o sono sutil de quem, à entrada do cabaré, dormia sob o alpendre. As putas que dentro dormiam também se assustaram com o estampido mirrado, veloz, mas que se fez notar de prontidão. No camarim o espelho, agora vazio, refletia um nada, refletia a solidão.


by Alfred Stieglitz

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